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Na audiência pública sobre o aborto que o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou no início de agosto, o doutor José Paulo Leão Veloso Silva foi uma exceção: ele foi o único expositor que falou como representante de uma das 27 unidades federativas do Brasil. Procurador do estado de Sergipe, Veloso Silva falou sobre a distinção entre descriminalização e legalização, a legislação brasileira sobre o exercício da medicina, os altos índices de aborto de crianças mais vulneráveis em países que legalizaram a prática e o problema do ativismo judicial.

Em carta à ministra Rosa Weber requerendo que o estado fosse representado na audiência, o governador de Sergipe, Belivaldo Chagas Silva (PSD), se disse “receoso” em ver-se “compelido a direcionar recursos públicos escassos para eliminar vidas humanas” e explicou que em Sergipe “a defesa da vida desde a concepção é uma política de Estado, não apenas de governo”. Em entrevista ao Sempre Família, Veloso Silva teve a oportunidade de aprofundar um pouco mais os argumentos expostos na audiência em nome de seu estado. Confira:

 

Sempre Família: O senhor foi expositor na audiência pública representando Sergipe – que foi o único estado a pedir habilitação como expositor. Por que o estado de Sergipe teve interesse em manifestar-se sobre o tema?

José Paulo Leão Veloso Silva: Primeiro, porque é obrigação de qualquer estado defender a vida. Lamento profundamente que o estado de Sergipe tenha sido o único a ter partido para essa empreitada. Além disso, essa defesa da vida está prevista aqui em Sergipe por meio de lei estadual. Embora não fosse necessário, aqui se aprovou uma política de proteção ao nascituro, que reforça que o estado tem a obrigação de defender a vida desde a concepção.

 

SF: O senhor ressaltou que, atendendo à ADPF, o STF estaria cometendo ativismo judicial. Com a ação, o senhor disse, “pede-se que o STF encampe um projeto de lei do PSOL que não foi aprovado no Congresso”. O ativismo judicial é há tempos um fantasma que paira ao redor do STF, sobretudo no julgamento de temas morais. O que pode ser feito para prevenir esse tipo de abuso?

Veloso Silva: Há três pontos que precisam ser observados: 1) O ativismo judicial significa a invasão sobre a competência de um dos outros poderes, o Legislativo ou o Executivo. Por conta da ADPF 442 e de outras demandas que transitam no STF, ultimamente costumamos associar o ativismo judicial à invasão de competências que são do Legislativo. Porém, é muito comum que o Judiciário também invada competências do Executivo: por exemplo, hoje há um número muito grande de demandas pedindo internações em hospitais, operações e fornecimento de medicamentos que acabam sendo decididas pelo próprio Judiciário, em juízos de 1º grau. Isso evidentemente abala todo o planejamento do Poder Executivo, que tem um orçamento limitado para prestar uma gama imensa de serviços de saúde. 2) Há também um ativismo ministerial. O Ministério Público frequentemente tenta impor ao Poder Executivo determinadas decisões que estão na esfera decisória do Executivo. Um exemplo: aqui em Sergipe tivemos vários problemas, sobretudo no interior, porque o Ministério Público tentou impor a certos municípios um determinado plano de educação. 3) Não há apenas uma solução. É preciso resolver o problema do ativismo na esfera micro, em cada juízo, em cada pequena vara, e também contê-lo na esfera macro, isto é, no STF, cujas decisões têm uma amplitude muito maior e muitas vezes vinculam todos os órgãos do Judiciário e do Executivo. Em relação a essa esfera macro, creio que duas medidas poderiam ser bastante efetivas – ambas viabilizadas através de propostas de emenda à Constituição (PEC). A primeira é estabelecer que o quórum para que o STF declare a inconstitucionalidade de uma lei deva ser de dois terços, por exemplo. Com isso, você exige que a corte consiga convencer um maior número dos seus membros para que se declare a inconstitucionalidade. Para a aprovação de uma PEC pelo Parlamento, são necessários 3/5 dos votos em votações de dois turnos em cada casa. Já para declarar a inconstitucionalidade de uma lei no STF, hoje basta a simples maioria – seis ministros. A segunda medida seria permitir que o próprio Parlamento possa cassar as decisões de declaração de inconstitucionalidade do STF. É lógico que alguém terá que ter a última palavra, mas creio que, como o controle sobre o Legislativo é mais eficiente do que o controle sobre o Judiciário, seria uma medida interessante permitir que o Parlamento possa cassar as decisões do STF em circunstâncias determinadas, como as decisões de declaração de inconstitucionalidade, também com um quórum qualificado de pelo menos 2/3.

 

SF: O senhor disse na audiência que “descriminalizar significa que não puno criminalmente. Puno de outras formas”. O senhor acha que seria adequado viabilizar projetos de lei que previssem outros tipos de punição para o aborto, descriminalizando-o?

Veloso Silva: Acho que em qualquer país do mundo a criminalização é absolutamente necessária para a proteção da vida intra-uterina. Não vejo nenhuma possibilidade de que se faça um combate efetivo ao aborto hoje em dia com a descriminalização. O que eu quis sublinhar na audiência é que a linha que foi apresentada pelo PSOL na petição inicial da ADPF 442 faz uma relação entre a descriminalização e a obrigação do Sistema Único de Saúde de promover abortamento. Ora, mesmo que houvesse a descriminalização, ela não traria como consequência necessária a obrigação de que o Estado realizasse o abortamento. A descriminalização poderia ser uma opção – apenas do Legislativo e, na minha ótica, uma péssima opção –, mas não implicaria a obrigação ou o direito de realizar o aborto. Dou dois exemplos: o Código Penal não pune o furto cometido por filho contra o pai, embora o considere crime. Não se pode deflagrar uma investigação ou um processo criminal contra o filho que furta o pai. Além disso, o Código Penal também não pune o homicídio culposo do pai contra o filho. Evidentemente o Estado não deseja que o pai seja irresponsável nos cuidados com o filho, mas decidiu-se que a punição não seria adequada nesse caso. Como eu disse, no caso do aborto, considero que essa seria, embora legítima, uma péssima opção. Eu acredito que o crime de abortamento deveria ser punido com muito mais rigor, sobretudo para quem realiza o procedimento: o médico, o enfermeiro, a parteira, etc. Mesmo para a mulher, acredito que a punição atual é muito baixa considerando a gravidade do fato. A primeira obrigação de uma mãe, bem como a de um pai, é proteger o seu filho. Creio também que o próprio sistema de investigação criminal deveria ter estruturas muito mais adequados muito mais adequado para a apuração desse tipo de crime. É um crime difícil de se apurar: todas as pessoas envolvidas têm interesse em ocultar o fato e a vítima não tem como reclamar.

 

SF: Muitas vezes usa-se em favor da legalização o argumento de que o número de abortos costuma diminuir após a legalização. O senhor trouxe, porém, números sobre o aborto de bebês do sexo feminino e de bebês diagnosticados com síndrome de Down e disse que “a descriminalização traz um peso muito grande, sobretudo para os mais vulneráveis”. O senhor imagina que, se o Brasil legalizasse o aborto, casos como esses se repetiriam por aqui?

Veloso Silva: O número de abortos sempre aumenta com a descriminalização ou a legalização e os números oficiais comprovam isso. A razão é óbvia: embora haja um número de pessoas que se dispõem a uma prática criminosa mesmo sabendo que podem vir a ser punidas, a maior parte das pessoas deixa de praticar determinado ato pelo simples motivo de uma norma o proibir. A maioria de nós agimos assim. Dois aspectos são muito importantes em relação à descriminalização. O primeiro é que com ela se perde a consciência de que o abortamento é algo grave – a consciência de que a vida vale porque é vida. O segundo é que todos nós tendemos um pouco à eugenia: queremos filhos bonitos, saudáveis e inteligentes, e isso é um desejo natural. Esse sentimento eugênico do qual muitas vezes nós sequer nos damos conta, associado à desvalorização da vida, acarreta em uma tendência de avançar contra a vida daqueles que não chegariam à luz com as mesmas aptidões e habilidades com que a maioria de nós chega. É por isso que em qualquer país do mundo que tenha descriminalizado o aborto as maiores vítimas são pessoas com algum tipo de deficiência ou limitação.

 

SF: No Código Penal, o aborto vem classificado como um dos “crimes contra a vida”, dentro do âmbito dos “crimes contra a pessoa”. Para os legisladores da década de 1940, parece que estava claro categorizá-lo dessa maneira. Por que hoje não há consenso nisso?

Veloso Silva: Na verdade, creio que haja consenso. Não acredito que no estágio atual da ciência se possa negar que o feto ou embrião é um ser da espécie humana e é um ser vivo. Então, o problema não é a falta de consenso sobre o que aquela criança é. O problema é de cunho eminentemente ideológico. Acredita-se que a criança deve servir à mãe. É uma ideologia em que o que importa são os desejos da mãe. Então, a partir dessa ideologia, embora se reconheça que aquela criança é um ser humano vivo, não se reconhece que ela mereça proteção, porque protegê-la implica limitar a irresponsabilidade – os defensores da legalização chamam de “liberdade” – da mãe. Creio que ao ver todos os fundamentos apresentados pelos grupos pró-legalização, chega-se sempre no final ao mesmo resultado: eles não apresentam argumentos para a sua posição, mas a tomam como pressuposto e a escondem em uma capa bonita – falsa, mas bonita. Faz-se um jogo de palavras, como se a legalização do aborto tivesse a ver com a liberdade para engravidar e não com a liberdade para matar uma criança. Esse jogo de palavras mascara a realidade.

 

SF: O senhor citou uma tendência à “desejolatria” que se manifesta em alguns argumentos pró-legalização do aborto. Citou que “o meu desejo não importa tanto assim” diante da responsabilidade pelo outro. Para além do âmbito legal, o que o senhor acha que pode ser feito para reverter essa tendência cultural?

Veloso Silva: A partir da experiência concreta que vivo aqui em Sergipe – o estado passa por uma crise financeira que o impede de realizar as atividades que lhe são obrigatórias –, penso que é muito importante que o Estado se reaproxime das religiões e das igrejas. Isso porque as igrejas têm condições de realizar determinadas coisas que o Estado quis tomar para si, mas acabou fazendo isso de forma bastante precária – por exemplo, o cuidado das pessoas que têm problemas com drogas ou alcoolismo, das mulheres com problemas decorrentes de um trauma pós-aborto e de pessoas que não têm o que comer ou onde morar. As igrejas cuidam desses problemas com muita eficiência, mesmo com parcos recursos. Acredito, então, que essa cultura da “desejolatria” pode ser mudada dando visibilidade a atividades em que uma pessoa cuida de outra pessoa. O Estado já se mostrou ineficiente para agir nessas searas, mas tem condições de coordenar essas ações, sem se subordinar às igrejas nem se impor sobre elas. Acho que a cultura do descartável surge quando vulgarizamos a falta de cuidado das pessoas por outras pessoas. Na mesma linha, creio que seja muito relevante trazer de volta para a escola os valores judaico-cristãos que moldaram a sociedade ocidental – que hoje são até rechaçados e discriminados. Não para que as pessoas sigam uma determinada religião, mas para que absorvam valores como a ideia de que o outro importa e de que tenho responsabilidade pelo outro. Outro ponto – e o mais importante – é que é preciso fortalecer os vínculos familiares, através de políticas públicas que favoreçam o convívio entre os familiares, aumentando o seu tempo de convivência. Não acredito num Estado verdadeiramente forte com famílias fragilizadas – a não ser que se trate de um Estado totalitário. Além disso, acredito que se formos responsabilizados nas pequenas coisas, acabaremos adquirindo a consciência da nossa responsabilidade. Uma política de tolerância zero que aplique pequenas punições a pequenos desvios, como estacionar em local proibido, pode ser capaz de ajudar a criar a noção de responsabilidade.

 

SF: O senhor citou a Lei nº 12.842, que dispõe sobre o exercício da medicina, sublinhando que a ação profissional do médico está voltada para “a promoção, a proteção e a recuperação da saúde; a prevenção, o diagnóstico e o tratamento das doenças; e a reabilitação dos enfermos e portadores de deficiências” – e, portanto, não pode incluir a prática do aborto. Que peso uma lei como essa tem no debate sobre a legalização do aborto?

Veloso Silva: O peso de uma lei como essa é imenso. Quando alguém ingressa numa faculdade de medicina, o seu objetivo é salvar vidas. Essa é a única função do médico. Confesso que, entre as muitas coisas que me surpreenderam na audiência pública, nenhuma me surpreendeu tanto quanto ver médicos defendendo a descriminalização do aborto. Lembro que quando a minha esposa ficou grávida do nosso terceiro filho, uma menina, ela teve um tumor e foi recomendado que ela se submetesse a uma cirurgia – que, porém, colocaria em risco a nossa filha. Na época lembro que fiquei horrorizado ao ouvir da obstetra que havia duas pacientes ali, mas que uma teria prioridade sobre a outra. Para nós, isso foi uma bomba. Ouvir que um médico possa receber dois pacientes e defender a morte de um deles é algo assustador. Então, já que uma parte dos médicos perdeu a consciência moral, ao menos a lei deve suscitar neles uma consciência de respeito à lei. Hoje a lei traz a descrição das atividades do médico e entre elas não está o abortamento – pelo contrário, essa é uma prática diametralmente oposta àquela preconizada pela lei que rege o exercício da medicina.

 

Assista à exposição do procurador José Paulo Veloso na audiência pública sobre a ADPF 442:

 

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