É possível uma educação dos sentidos que gere uma relação com o corpo diferente daquela anestesiada com que nos acostumamos
| Foto: Aung Soe Min/Unsplash

O nosso corpo, ao mesmo tempo, delimita quem somos e nos põe em contato com o mundo exterior. Nada vem ao nosso interior a não ser a partir do exterior, por meio dos nossos sentidos – que, segundo a lista clássica, que remonta ao século IV a.C., são cinco: o olfato, o tato, o paladar, a visão e a audição. Mesmo assim, é comum que não levemos suficientemente em consideração o papel da educação dos sentidos no nosso próprio desenvolvimento e no de crianças e jovens.

Agimos como se fôssemos máquinas que processam e transmitem informações impalpáveis, ideias que se disseminam de cérebro a cérebro, sem passar pela voz, pelos lábios, pelos gestos, pelo toque, pelo ouvido ou pela visão. Acontece que, sem prestar mais atenção aos sentidos – e o ritmo desenfreado do nosso dia a dia acaba sendo um obstáculo também a isso –, acabamos perdendo muito da profundidade e da beleza da experiência humana.

Basta você se perguntar quando foi a última vez em que, durante a maior parte do tempo de uma refeição, concentrou-se em perceber o sabor de cada alimento. Ou quando foi a última vez em que parou para escutar música, em vez de ouvi-la enquanto trabalha, dirige ou estuda, ou quando parou para cheirar o perfume de uma flor, ou quando deu um abraço prolongado em alguém que você ama – os exemplos não têm fim.

“A modernidade, embora tenha combatido aspectos do medievalismo, não reabilitou o corpo, mas embarcou no racionalismo iluminista que também negligenciava a dimensão corpórea como parte fundamental do desenvolvimento humano”, explica o educador Matheus Cedric, professor de Filosofia e de Ensino Religioso. “Por isso, nas nossas escolas, o corpo ainda é alvo de desconfiança e controle: ele precisa estar sentado, enfileirado, uniformizado, silencioso e quase inerte”.

Se estamos destreinados para estar mais conscientes dos nossos sentidos, é possível tanto caminhar em busca de uma maior harmonia com o nosso corpo, quanto educar as gerações mais novas para uma relação com os sentidos diferente daquela – anestesiada – com que nos acostumamos.

“Pensar o corpo não significa pensar simplesmente aquilo que em nós é quantificável, pesável, tangível, mensurável”, aponta o educador Gabriel Perissé, autor de Uma pedagogia do corpo (Ed. Autêntica). “Cada pessoa é um composto. Posso dizer que sou um corpo – não há nada de materialismo nisso. Pelo contrário, tem-se a percepção da beleza e da unidade que cada pessoa é. E se o processo educativo consiste em levar uma pessoa à sua máxima realização, essa máxima realização não pode ser simplesmente mental, intelectual, profissional ou em qualquer outro sentido que priorize apenas uma dimensão da realidade humana”.

“Falar em corporeidade não é pensar apenas na genitalidade, na aparência ou na relação sexual”, complementa Cedric. “É falar também sobre nossa capacidade de demonstrar afeto, sobre nossa necessidade de trabalho e descanso, sobre o nosso paladar e alimentação, sobre nossa capacidade de dialogar com o outro, de apreciar uma boa música, de contemplar uma bela paisagem. Tudo isso tem a ver com nossos sentidos e nossos corpos e, para tudo isso, precisamos de formação”.

A educação dos sentidos

Não é preciso muita reflexão para perceber que falar em uma educação dos sentidos não tem nada de perfumaria: trata-se de uma dimensão fundamental da educação como um todo, que atravessa todas as áreas da vida humana. “Uma criança precisa desenvolver seu paladar, na medida em que os pais a estimulam a ter contato com alimentos diversos e saudáveis. Precisa aprender a ouvir, quando é apresentada a sonoridades diferentes e pode se expressar e opinar sobre elas também. Precisa aprender a conversar, a perceber seu tom de voz quando fala e a se dar conta de quando grita em ambientes impróprios e de quando é necessário fazer silêncio”, sublinha Cedric.

E como, na prática, ingressar em uma relação de maior qualidade com o nosso corpo? “Um caminho interessante de autoaperfeiçoamento nesse sentido é justamente olhar o nosso corpo como um corpo que nos ensina”, sugere Perissé. “Um exemplo é quando dizemos que fulano ‘tem os pés no chão’. Isso é muito interessante, porque quando tiramos os sapatos e colocamos os pés no chão, na terra, é como se descobríssemos a nossa realidade telúrica, criacional. Somos terrosos, terráqueos, e todo o nosso corpo está em consonância com a Terra”.

Cedric destaca que o corpo pode ser treinado, como quando vamos à academia. “Mas quando, por exemplo, treinamos nossa visão? Uma ida ao museu, em que eu me permita parar por cinco minutos diante de uma pintura ou escultura, analisando seus diversos aspectos, é um belo treinamento. Quando saboreamos atentamente uma refeição, distinguindo sabores, temperos, consistências, treinamos nosso paladar”, exemplifica o professor. São esses pequenos momentos de atenção mais plena à nossa experiência – de meditação mesmo – que constituem o caminho para uma educação dos sentidos.

“Como o universo da criança é lúdico, pode-se sempre propor jogos e desafios: vamos observar essa paisagem e descrevê-la com detalhes? Vamos ouvir essa música e tentar adivinhar quais instrumentos foram usados nela?”, indica Cedric. “Precisamos ter tempo e paciência. E em relação às crianças, dedicar tempo e paciência para incentivá-las a essas práticas e fazer com elas tudo isso”.

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