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Focar apenas no final feliz não significa uma boa forma de encarar as felicidades cotidianas.| Foto: Bigstock

“Tudo está bem quando acaba bem”, escreveu William Shakespeare há mais de 400 anos. As palavras podem até parecer verdadeiras mesmo hoje, mas, no fim das contas, não são. Nós acabamos de desmascarar esse velho mito em um experimento recente de neuroimagem, publicado no periódico Journal of Neuroscience.

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Vivências que terminam bem não são necessariamente boas em geral e vivência que não terminam tão bem assim não são necessariamente tão ruins. Por exemplo, se você jogar cinco rodadas de pôquer, você vai gostar muito mais de ganhar duas vezes na metade do jogo do que de ganhar apenas uma no final – mas nem sempre nós percebemos isso.

Na verdade, um dos numerosos calcanhares-de-aquiles que nos levam a tomar decisões ruins é a nossa irrazoável preferência por finais felizes.

Negligência no caminho

Crer num final feliz significa crer que as coisas vão melhorar à medida que a história se desenrola. No entanto, o foco nos finais felizes pode nos tornar negligentes a respeito daquilo que acontece ao longo do caminho. Um final feliz pode ser breve e se dar logo após um longo período de mediocridade.

A maioria de nós deseja que nossas experiências agradáveis durem tanto quanto possível, mas ao mesmo tempo queremos que as coisas acabem bem. Quando Dumbledore morreu, no final de Harry Potter, algumas pessoas podem ter sentido que toda a sua experiência tinha se arruinado. Mas toda a satisfação que já existiu não deveria ser descontada por causa de um fim decepcionante. Um período de férias, com o clima perfeito a não ser pelo último dia, não pode ser tido como pior do que um dia de folga com tempo bom o tempo inteiro.

No entanto, é exatamente assim que algumas pessoas se sentem sobre experiências do passado. Essa obsessão com imaginar que as coisas devem melhorar cada vez mais ao longo do tempo é como a falácia do banqueiro: focar em crescimento no curto prazo às custas dos resultados no longo prazo.

O núcleo do problema é a diferença entre o que desfrutamos durante a experiência e o que queremos sentir depois da impressão final. Fixar-se no final feliz apenas maximiza a impressão final, e não a satisfação com o todo.

A neurociência dos finais felizes

Para examinar esse fenômeno, convidamos 27 voluntários a participar de um experimento virtual de apostas. Os participantes assistiam, em uma tela de computador, a moedas de ouro de diferentes tamanhos caindo, uma por uma, dentro de potes. O final feliz seria aquele em que, no fim da sequência, moedas maiores fossem depositadas no pote.

O experimento aconteceu em um aparelho de ressonância magnética, o que nos permitiu monitorar a atividade cerebral enquanto os participantes examinavam as sequências. A cada duas sequências, eles precisavam dizer qual dos dois potes eles preferiam.

Descobrimos que há uma boa razão pela qual as pessoas gostam de finais felizes. As análises da atividade cerebral mostraram que registramos o valor de uma experiência em duas regiões cerebrais distintas. O valor geral está registrado em uma região chamada amígdala, que tem uma reputação ambígua.

Algumas pesquisas mostraram que a ativação da amígdala é responsável por mediar respostas emocionais que podem levar a um comportamento irracional, mas também descobriu-se que a amígdala pode codificar e registrar o resultado de estratégias de economia de dinheiro.

Porém, a influência da amígdala na tomada de decisões é marcada por desestimular a atividade de uma região chamada ínsula anterior se uma experiência vivida não terminou bem. A ínsula anterior às vezes é associada ao processamento de experiências negativas, como o nojo, o que sugere que finais infelizes despertam ativamente o repúdio de algumas pessoas.

No experimento das apostas, pessoas boas em tomar decisões optaram pelos potes que tinham mais dinheiro no total, independentemente se houve moedas maiores no final da sequência.

Notamos nessas pessoas uma representação intensa do valor geral na amígdala, enquanto nas outras pessoas, que tomaram decisões piores, a atividade era mais forte na ínsula anterior. Em outras palavras, para tomar boas decisões é necessário ser capaz de superar uma impressão desagradável numa experiência, como um final infeliz.

Experimento do restaurante

Imaginemos que você sai para jantar e precisa escolher entre um restaurante grego e um italiano, sendo que já foi a ambos. Essencialmente, você pergunta ao seu cérebro qual foi a melhor refeição na última vez em que esteve em ambos. Se todos os pratos no restaurante grego foram “satisfatórios”, então é claro que o jantar como um todo foi “satisfatório”.

Mas se o restaurante italiano começou “mais ou menos”, o prato principal foi “razoável” e, no entanto, o tiramisù no final foi “maravilhoso”, então talvez você tenha formado uma impressão positiva do restaurante porque a refeição teve um final feliz.

Como esses mecanismos cerebrais operam queiramos ou não, podem ser reforçados por elementos culturais que tenham interesse em manipular as nossas percepções, como o marketing, a propaganda, as fake news e por aí vai.

Tudo isso explora a nossa suscetibilidade a formas narrativas. Ninguém é imune à propaganda. Quanto mais instituições manipulam o nosso pensamento, mais ameaçada fica a nossa capacidade de tomar boas decisões.

Nosso cérebro intuitivo precisa realmente de uma intervenção do nosso processo de pensamento mais deliberado, para nos ajudar a resistir a fake news e a outras formas de manipulação. Muitos de nós já sabemos como fazer isso - por exemplo, escrevendo uma lista de prós e contras para apoiar decisões mais sábias, em vez de confiar em nossa intuição.

Então, não era apenas Shakespeare que estava errado. Se nosso comportamento diário se tornar obsessivamente focado no passado imediato, estaremos errando o alvo. Precisamos parar e pensar sobre o que estamos fazendo usando o nosso córtex pré-frontal e superando esses impulsos, focando-nos nos aspectos mais relevantes de cada decisão.

*Martin D. Vestergaard é neurocientista computacional, da Universidade de Cambridge.
©2021 The Conversation. Publicado com permissão. Original em inglês.

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