Hildegarda de Bingen - A Santíssima Trindade
Hildegarda de Bingen - A Santíssima Trindade| Foto:

Lembro-me de uma ocasião em que eu apresentava a um grupo de católicos uma sofisticada tese patrística a respeito da comunhão com Deus e uma senhora disse num tom de desafio e com um sorriso no rosto: “Ainda bem que Deus é simples”. Convém investigar o que esta frase realmente significa. Que Deus seja simples não é propriamente uma novidade: o próprio Agostinho, no “De Trinitate” (lib. VI, cap. 6) aponta que Deus é verdadeira e sumamente simples.

Mas afinal, o que significa a simplicidade? Em nosso vocabulário corrente, simples tem uma conotação de “pouco sofisticado”, “modesto”, “básico”. Uma roupa simples é uma roupa que não possui qualquer adereço; uma pessoa simples é aquela que vive sem luxos. Quando aquela senhora se opunha às citações que trazia para a discussão, dizendo que “Deus é simples”, o seu objetivo era se opor à complexidade da teoria exposta, repleta de palavras pouco usuais e nuances. Embora este sentido de “simples” não esteja totalmente equivocado quando se fala em Deus, não é este o sentido mais profundo que devemos levar em consideração quando dizemos que “Deus é simples”.

Já no mundo antigo temos uma referência que se consolidará quando se pensa sobre o assunto: para Aristóteles (1015b, 12), simples é aquilo que não pode ser entendido de muitos modos: não é possível que o simples seja ora de um modo, ora de outro. “Simples” ganha um estatuto de necessidade, de imutabilidade. Quando o apóstolo Paulo diz “se formos infiéis, Deus permanecerá fiel, pois não pode negar-se a si mesmo” (2Tim, 13), enfatiza esse mesmo conceito: Deus é fiel em seu amor. Ora, se Deus é também simples, não pode mudar e deixar de ser fiel. Donde, independente de nossas ações, diz Paulo, Deus permanecerá imutavelmente fiel.

Agostinho, ao dizer que Deus é simples, tem esse panorama de imutabilidade em sua mente. O filósofo de Hipona contrapõe Deus à multiplicidade das criaturas: todas as coisas que existem são compostas de partes menores, e estas partes são igualmente divisíveis. O universo – diz – é dividido entre o Céu e a Terra, que tomados individualmente são menores do que o todo; por sua vez, tomados como um todo, podem ser divididos em partes ainda menores. Ademais, os corpos possuem propriedades que podem ser alteradas; é possível que algo mude de cor sem mudar de tamanho, por exemplo. E Agostinho insiste que mesmo a alma, que é mais simples que o corpo, experimenta sensações e atividades diferentes, e com várias intensidades.

Este caminho percorrido por Agostinho é um representante claríssimo de sua via apofática: sem falar o que é Deus, fala do que ele não é. Todas estas coisas são mutáveis. Nenhuma dessas coisas mutáveis é Deus, porque Ele é imutável. Segue-se que as coisas são mutáveis porque são compostas, e são alteráveis. Deus não é composto, não muda, não experimenta intensidades diferentes, sentimentos diferentes. Deus permanece sendo sempre amor, com a mesma intensidade, portanto. Deus não é corpo, pois corpo tem partes… Entende-se, pois, o que significa dizer que “Deus é simples”.

Tomás de Aquino é ainda mais extenso ao discorrer sobre a simplicidade de Deus. Toda a questão 3 da primeira parte de sua Suma de Teologia é uma reflexão sobre este tema, e a questão seguinte é um desdobramento da mesma. Segundo este intelectual, afirmar a composição de Deus é pensar que Deus depende de outras causas e de outros componentes, pois tudo aquilo que é composto depende das partes que a compõem e de uma causa anterior que faça a composição. Ademais, as partes não correspondem ao todo composto: um pé pode ser parte do homem, mas não é o homem; e embora uma porção de água continue sendo água, ela é menor que a parte originária. Deus não pode ser dividido dessa maneira. Essa segunda interpretação para simples, oposta à composição, é a que ficará mais consolidada frente à posição de simples como imutabilidade, tendo também seus usos na modernidade, através de filósofos como Leibniz e Wolff.

A mais evidente consequência dessa simplicidade divina é, com toda certeza, a Trindade. Os cristãos sempre vão correr o risco de encarar a Trindade como três indivíduos justapostos que compõem um Deus. Mas se Deus é simples, a Trindade não pode ser uma justaposição. Por isso, o Catecismo da Igreja Católica esclarece: “Cremos firmemente e afirmamos simplesmente que há um só verdadeiro Deus eterno, imenso e imutável, incompreensível, Todo-Poderoso e inefável, Pai, Filho e Espírito Santo: Três Pessoas, mas uma Essência, uma Substância ou Natureza absolutamente simples” (nº 202).

Mas isso se aplica a muitas coisas que se diz sobre Deus. Quando, por exemplo, se diz que “Deus é justo” e que “Deus é misericordioso”, não podemos crer – se estamos convencidos de que Deus seja simples – que estes atributos dados a Deus sejam partes d’Ele, e que existam alguns momentos em que Deus seja justo e outros em que Ele seja misericordioso. A ação divina, devido à simplicidade, supõe que Deus aja em todos os momentos de modo justo e misericordioso: por isso toda ação misericordiosa supõe uma justiça e toda justiça supõe uma misericórdia. Trata-se de um mesmo agir.

No entanto, nós é que somos “compostos”: de alma e corpo, essência e existência, substância e acidentes… e por isso a maneira com que nós inteligimos o mundo a nossa volta (e também aquilo que podemos inteligir de Deus) é uma maneira analítica, um passo de cada vez. Por isso, por vezes as teorias parecem tão complexas. Não é papel do intelectual reunir todas as coisas, mas do sábio. Caberá ao sábio sair do analítico e retomar a contemplação do simples. Mas o sábio jamais negará a complexidade que às vezes é necessária para uma correta intelecção de nós, do mundo e de Deus – infinitamente criativo. Ele apenas ressaltará que a complexidade dessas intelecções não substitui a simplicidade do Amor.

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