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Para convencer ou consolar a própria consciência diante de uma escolha moralmente discutível, algumas pessoas têm apelado nas redes sociais à tese de que a posição de um candidato à presidência sobre aborto é irrelevante, já que isso é assunto para os parlamentares. Trata-se de uma afirmação preguiçosa que ignora o funcionamento do presidencialismo no Brasil, a dinâmica do Congresso Nacional e até a história recente sobre o tema.

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Para evitar que gente bem intencionada caia nessa falácia, separei abaixo quatro fatores que são ignorados por quem a propaga.

 

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1) Poder de veto

Ainda que o Congresso Nacional viesse a aprovar uma lei legalizando o aborto, o presidente da república pode vetá-la alegando inconstitucionalidade ou contrariedade ao interesse público. Ele sempre será a última resistência no processo de criação de leis. O Congresso pode derrubar o veto? Pode, mas isso é muito mais difícil do que aprovar uma lei.

A aprovação de um projeto de lei se faz com maioria simples (a maioria dos presentes naquela sessão, contanto que representem a maioria dos parlamentares da casa), enquanto derrubada de veto exige maioria absoluta em sessão conjunta, ou seja, seriam necessários os votos de pelo menos 257 deputados federais (o número total é de 513) e 41 senadores (o total é de 81) em sessão simultânea. Além disso, desde 2013 não é mais possível derrubar veto presidencial em votação secreta. Todos os parlamentares são obrigados a votar publicamente.

 

2) Base de apoio parlamentar

No Brasil, historicamente, o presidente da república quase sempre consegue apoio da maioria no Congresso Nacional, mesmo se o seu partido não eleger a maioria dos deputados e senadores, especialmente se estiver com a popularidade em alta. Isso se deve à possibilidade de nomeação de cargos em ministérios e estatais, e, principalmente, ao poder de liberar emendas parlamentares, que são verbas públicas usadas para fins bastante específicos, como pavimentar uma estrada ou comprar equipamentos para determinado hospital, a pedido de um parlamentar.

Esse dinheiro é previsto no orçamento anual e a liberação não precisa de aprovação prévia do Congresso. Portanto, tradicionalmente, o presidente da república usa esse instrumento para barganhar apoio nos projetos que lhe interessam – pode ser a legalização do aborto, por exemplo. O governo, assim, consegue os votos que quer e o parlamentar ganha popularidade junto à sua base eleitoral, onde normalmente investe esses recursos.

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Mesmo uma presidente impopular, como Dilma Roussef, por muito tempo, conseguiu aprovar quase tudo o que queria fazendo uso desse artifício.

 

3) Políticas públicas

Em certo nível, o governo sempre poderá promover aquilo que deseja – como o aborto – mesmo que não haja uma lei que legalize a prática. Ele faz isso usando programas sociais, campanhas publicitárias, normas técnicas e todo um arsenal de possibilidades aos quais os ministérios e secretarias têm à sua disposição.

Por exemplo, em 1998, no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o ministério da Saúde emitiu uma norma técnica que regulamentava a prática do aborto no SUS até às 20 semanas para os casos de aborto por estupro, determinando, inclusive, o uso de recursos públicos para isso. O texto dessa norma considerava o aborto em caso de estupro legalizado no Brasil, quando na verdade o Código Penal deixa claro que nessa circunstância o ato apenas “não é punido”.

Em 2004, no governo Lula, o ministério da Saúde emitiu outra norma técnica, dessa vez intitulada Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, na qual trata o aborto explicitamente como “direito da mulher” e fundamenta-se numa enxurrada de dados falsos.

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Em 2012, já no governo Dilma, o ministério da Saúde imprimiu  268.108 cartilhas com o título Protocolo Misoprostol, que traziam instruções de uso de um medicamento abortivo proibido no Brasil. Na ocasião, o governo alegou que eram destinados apenas aos médicos obstetras e ginecologistas, mas o volume de impressões ultrapassava em muito o número de profissionais atuantes na área naquele momento (22.815), além disso, nos meios pró-vida, surgiram relatos de pessoas que obtiveram a cartilha em postos de saúde, à disposição do povo.

 

4) Indicar ministros do STF

A situação pela qual o Brasil passa hoje, com o enorme risco de descriminalização do aborto via STF, é outra prova do poder que um presidente tem quando o assunto é aborto. É o presidente da república quem indica os homens e mulheres que vão compor o tribunal mais importante do país e que, nos últimos anos, tem revelado uma terrível tendência de legislar, atropelando as atribuições constitucionais do Congresso Nacional. Foram onze ministros não eleitos – mas indicados pelo presidente – que decidiram, em 2012, que bebês diagnosticados com anencefalia poderiam ser abortados, abrindo uma exceção que não constava na legislação e contrariando as evidências de que muitos bebês com essa condição nascem com vida e vivem por anos.

Não é segredo para ninguém que o perfil de jurista que é colocado nesse tribunal quase sempre converge com os interesses e ideologia do presidente que o indica. É verdade que o nome precisa ser aprovado pelo Senado, mas também é verdade que a última vez que os senadores reprovaram uma indicação do presidente aconteceu há mais de cem anos (1894), quando o presidente era o marechal Floriano Peixoto.

 

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Essas são apenas algumas das formas pelas quais um presidente da república tem sim muito poder quando o assunto é aborto. Portanto, não passe vexame nas redes sociais. Venha para o mundo real e pare de propagar a besteira de que “é o Congresso que trata desse assunto, então a posição do presidente não importa”.

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