Ele foi prefeito e deputado – e pode ser proclamado santo
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“A política é uma das mais altas formas de caridade”, afirmou o Papa Francisco, no rastro de Paulo VI e Pio XI. O quanto, porém, isso parece distante da prática da maioria de nossos políticos. É até estranho pensar que na metade do século passado a Itália conheceu um político que ficou conhecido como “o prefeito santo”: Giorgio La Pira (1904-1975), que “passou fazendo o bem” (At 10, 38) pela Câmara dos Deputados, pela Assembleia Constituinte, pelo Ministério do Trabalho e pela Prefeitura de Florença e está em processo de canonização.

Nascido em Pozzallo, na Sicília, La Pira mudou-se para a Toscana aos 22 anos para dar continuidade à faculdade de Direito, que havia começado na Universidade de Messina, na Universidade de Florença. Ele recordava a Páscoa de 1924 – dois anos antes – como um momento de especial encontro com Deus, que deu origem a um processo de discernimento em que ele se sentiu chamado a ser um “missionário do Senhor no mundo”, nas realidades seculares, mais do que no presbiterado. Optou, assim, pelo celibato.

Ainda aos 22 ele começou a assumir algumas disciplinas na Universidade de Florença, na área do Direito Romano. Pouco depois, começou a engajar-se politicamente, tornando-se membro de uma organização clandestina antifascista e fundando, aos 35 anos, a revista Principi – uma revista em latim voltada à defesa dos direitos da pessoa humana. A publicação foi suprimida pelo regime fascista, bem como sua sucessora, o panfleto clandestino San Marco, criado em 1943. La Pira foi perseguido pela polícia, fugindo para Siena e depois para Roma – chegando a refugiar-se na casa de seu amigo Giovanni Battista Montini, o futuro Papa Paulo VI –, voltando a Florença apenas em 1944.

Foto: Fundação Giorgio La Pira Foto: Fundação Giorgio La Pira

No ano seguinte, candidatou-se pela Democracia Cristã para a Assembleia Constituinte, sendo um dos signatários da atual Constituição italiana. O artigo 2º do texto foi proposto inicialmente por La Pira: “A República reconhece e garante os direitos invioláveis do homem, quer como indivíduo, quer nas formações sociais em que realiza a sua personalidade, e requer o cumprimento dos deveres inderrogáveis de solidariedade política, econômica e social”. Foi a primeira vez na história do Ocidente que uma constituição mencionou explicitamente a defesa dos direitos humanos.

“Algumas Constituições recentes (Áustria 1920, Letônia 1932, Polônia 1935) não falam dessa premissa. Isso porque os essenciais e tradicionais direitos do homem são por elas considerados como o pressuposto tácito e ineliminável de toda Constituição. É diferente o caso da nova Constituição italiana: ela está necessariamente ligada à dura experiência do Estado ‘totalitário’, o qual não se limitou a violar este ou aquele direito fundamental do homem, mas negou pela raiz a existência de direitos originários do homem, anteriores ao Estado”, afirmou La Pira.

Prefeito

A Constituição entrou em vigor em 1º de janeiro de 1948 e em abril La Pira voltou a eleger-se, agora para a Câmara dos Deputados. Foi subsecretário do Ministério do Trabalho e da Previdência Social até 1950 e voltaria para a Câmara entre 1958 e 1960. Em 1951, foi eleito prefeito de Florença. No período em que governou a cidade (1951-1957 e 1961-1965), reconstruiu edifícios e pontes destruídos pela II Guerra Mundial, edificou bairros e casas populares e dotou a cidade de tantas escolas que Florença levou 20 anos a mais do que as outras cidades da Itália para chegar a uma situação de crise em relação à falta de vagas nas escolas.

O Isolotto, bairro de casas populares criado por La Pira. Foto: Commons/Cyberuly O Isolotto, bairro de casas populares criado por La Pira. Foto: Commons/Cyberuly

La Pira enfrentou ainda energicamente o problema das famílias despejadas por não conseguirem pagar aluguel. Ele pediu aos proprietários de imóveis que os alugassem para a prefeitura, que então alojaria os despejados, mas eles não concordaram com a proposta. Baseando-se então em uma lei de 1865 que permite ao prefeito requisitar alojamentos em situações de graves motivos sanitários ou de ordem pública, La Pira ordenou a municipalização dos mesmos imóveis.

“Bem, senhores conselheiros, eu declaro a vocês com firmeza fraterna, mas decidida: vocês têm diante de mim apenas um direito: o de me negar a confiança. Mas não têm o direito de me dizer: senhor prefeito, não se interesse pelas criaturas sem trabalho, sem teto, sem assistência. Esse é o meu dever fundamental: dever que não admite discriminações e que deriva, mais do que da minha posição de cabeça da cidade – e por isso cabeça da única e unida família cidadã –, da minha consciência de cristão. Aqui está em jogo a própria substância da graça e do Evangelho!”, disse La Pira na ocasião.

Paz

La Pira ganhou renome mundial como promotor da paz. Organizou em Florença diversos simpósios e congressos para dar destaque ao tema, como o 1º Congresso Internacional pela Paz e pela Civilização Cristã, em 1955, a assinatura de um pacto de amizade entre prefeitos de capitais do mundo todo, em 1958, e a 9ª sessão da mesa redonda Leste-Oeste sobre o desarmamento, em 1963.

La Pira com o patriarca ecumênico Atenágoras em Constantinopla. Foto: Fundação Giorgio La Pira La Pira com o patriarca ecumênico Atenágoras em Constantinopla. Foto: Fundação Giorgio La Pira

Visitou cidades como Varsóvia, Moscou, Pequim e Hanói para tecer acordos de paz – foi o primeiro católico a discursar ao Parlamento soviético, em 1959, defendendo a paz e o desarmamento, e em 1964 percorreu os Estados Unidos unindo a sua voz à dos defensores dos direitos civis. Na última parte de sua vida, presidiu a Federação Mundial pela União das Cidades, o que também o fez percorrer várias partes do mundo. Com a situação crítica da política italiano, foi convidado a se candidatar novamente para a Câmara dos Deputados em 1976. Foi eleito, mas morreu em 5 de novembro do ano seguinte.

São Paulo VI recordou-o no Angelus no dia seguinte ao da sua morte. Foi chamado de “figura exemplar de leigo cristão” por São João Paulo II e lembrado como “cristão exemplar e administrador público estimado” por Bento XVI. São João XXIII, que o conheceu em 1956, quando ainda era patriarca de Veneza, anotou em seu diário na ocasião: “Ontem à noite estive com o professor La Pira, a quem estimo e venero. Ele é uma alma digna de todo o respeito”.

A sua causa de canonização foi aberta em 1986. A fase diocesana do processo por encerrada em 2005 e validada em 2007 e em julho de 2018 o Papa Francisco promulgou um decreto reconhecendo a heroicidade de suas virtudes. A partir daí, La Pira tem o título de “Venerável”: basta que um milagre ocorrido por sua intercessão seja confirmado para que ele seja beatificado. Com isso, se confirmariam as suas próprias palavras: “A santidade do nosso século terá esta característica: será uma santidade dos leigos. Nós cruzamos pelas ruas com aqueles que daqui a 50 anos estarão talvez sobre os altares: pelas ruas, nas fábricas, no Parlamento, nas salas de aula universitárias”.

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