Créditos: Paul Haring/CNS photo
Créditos: Paul Haring/CNS photo| Foto:

[Aproveitando o tema da Campanha da Fraternidade deste ano, “Biomas brasileiros e defesa da vida”, publico aqui um texto meu veiculado na Revista da Divina Misericórdia por ocasião da publicação da encíclica Laudato Si’, em 2015. Este pequeno artigo procura oferecer uma chave de leitura para identificar o fio condutor do texto de Francisco e da preocupação da Igreja com o cuidado do meio ambiente, a nossa casa comum.]

Já há algum tempo o magistério da Igreja tem dado atenção à crise ambiental. O Beato Paulo VI, São João Paulo II e Bento XVI se dedicaram de maneira crescente ao assunto e o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, de 2004, lhe dedica todo um capítulo. A segunda encíclica do papa Francisco, Laudato Si’ – sobre o cuidado da casa comum, recolheu as contribuições de seus predecessores, mas é preciso observar que a relação do cristão com o conjunto da criação é uma intuição presente em toda a história da Igreja, quer de forma mais latente, quer explicitamente. Não é, pois, por modismo que a Igreja interage com essas questões, mas por se tratar de exigências intrínsecas à fé cristã, que dizem respeito a adotar um olhar redimido em nossas relações com o mundo.

A ideia de uma ecologia “integral” ou “humana” guia toda a encíclica. “O livro da natureza”, dizia Bento XVI, “é único, tanto sobre a vertente do ambiente como sobre a da ética pessoal, familiar e social.”[1] Não é possível falar em soluções para a crise ambiental sem pensar na existência humana como um todo. Por isso, seria possível até dizer que a Laudato Si’ não é sobre o meio ambiente: o seu tema é a vida do homem no contexto atual, no qual é preciso adotar um novo estilo de vida para superar uma lógica individualista, que se manifesta também no desprezo do pobre, na indiferença ao rosto do próximo, na relativização da família e na insensibilidade a Deus.[2] Há algumas ideias frequentes na encíclica que buscam exprimir em que consiste esse novo estilo. Três palavras nos parecem centrais.

A primeira é contemplação. “O mundo é algo mais do que um problema a resolver; é um mistério gozoso que contemplamos na alegria e no louvor” (n. 12). Essa é a tônica do Cântico das criaturas, de São Francisco de Assis, de onde o papa sacou o título da encíclica. Deus se revela a nós através da criação; contemplá-la nos humaniza, nos põe em contato com Ele, que nela deixou seu vestígio. Por isso, Francisco lembra da necessidade de uma educação estética apropriada: “Prestar atenção à beleza e amá-la ajuda-nos a sair do pragmatismo utilitarista. Quando não se aprende a parar a fim de admirar e apreciar o que é belo, não surpreende que tudo se transforme em objeto de uso e abuso sem escrúpulos” (n. 215; ver também 73, 85-86, 97, 222, 225, 233, 238-240).

A segunda palavra é dom. Contemplar o mundo é vê-lo como dom, o que nos põe em outra lógica, a da gratuidade. Quem vive na esfera do dom não degrada para a esfera do domínio, onde tudo pode ser submetido ao próprio arbítrio, numa atitude que, em última instância, é de soberba e revolta contra o Criador e o seu amor abundante. A lógica do dom me conduz a acolher com gratidão o meio ambiente, o próximo e até o meu corpo, na sua feminilidade ou masculinidade, sem violentar a sua natureza (n. 155). Isso implica “disposições gratuitas de renúncia e gestos generosos” (n. 220) para salvaguardar e compartilhar o dom vivido e recebido (n. 76, 93, 146, 159 e 226).

Se há um Doador e um gesto de doação é porque existe em cada dom um significado: essa é a nossa terceira palavra. Bento XVI já fazia ver que o ambiente contém em si “uma ‘gramática’ que indica finalidades e critérios para uma utilização sábia, não instrumental nem arbitrária” (Caritas in Veritate, n. 48). Francisco diz: “Quando nos interrogamos acerca do mundo que queremos deixar, referimo-nos sobretudo à sua orientação geral, ao seu sentido, aos seus valores. Se não pulsa nelas esta pergunta de fundo, não creio que as nossas preocupações ecológicas possam alcançar efeitos importantes. Mas, se esta pergunta é posta com coragem, leva-nos inexoravelmente a outras questões muito diretas: Com que finalidade passamos por este mundo? Para que viemos a esta vida? […] é a nossa própria dignidade que está em jogo” (n. 160). Em suma, é um caminho de ida e volta: por um lado, se a existência é vazia de sentido, que importância têm nossas relações com o ambiente? Por outro, a própria contemplação da criação nos leva a entrever o seu significado (ver n. 79, 110, 113, 125-126, 199 e 241).

Sem esse novo estilo de vida, baseado na lógica da contemplação, do dom e do significado, não é possível superar a espiral de individualismo da qual decorrem os problemas ambientais, sociais, familiares e pessoais de nosso tempo. Por isso, o papa convida todos a assumi-lo, não apenas os cristãos. Que nós, que fizemos do Cristo Jesus o centro de nossas vidas, não soneguemos ao mundo o nosso testemunho de um novo olhar em todas as nossas relações.

[1] Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2010. Ver também Caritas in Veritate, 51, a Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2007 e a encíclica Centesimus Annus, de São João Paulo II, 38-39.

[2] O Compêndio da Doutrina Social da Igreja já abordava a questão desde esse ponto de vista (n. 486-487), falando da necessidade de novos estilos de vida e evocando as atitudes que a seguir descreveremos.

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