O delegado Rafael Vitola Brodbeck em entrevista à imprensa sobre a Operação Rei Herodes, em 2009.
O delegado Rafael Vitola Brodbeck em entrevista à imprensa sobre a Operação Rei Herodes, em 2009.| Foto:

No entanto, como se trata de um tema cheio de segredos, não é fácil identificar os criminosos. Para entender o trabalho da polícia ao lidar com essa situação o blog entrevista o delegado Rafael Vitola Brodbeck, titular do Distrito Policial de Santa Vitória do Palmar, no Rio Grande do Sul. Em 2009, vários veículos de comunicação repercutiram uma operação dirigida pelo delegado, que levou o sugestivo nome de Operação Rei Herodes. A ação policial fechou uma clínica de aborto no município de Itaqui, na divisa com a Argentina.

1) Como ocorre, na prática, a ação da polícia contra o crime do aborto ?

A Polícia Civil pode tomar conhecimento da prática, ou suspeita de prática, de qualquer delito a partir de inúmeras fontes. Por comunicação da Polícia Militar, requisições do Ministério Público ou do Poder Judiciário, por notícia de crime que venha de qualquer cidadão, etc.

O aborto, entretanto, pela sua natureza peculiar, envolto em segredos e clandestinidade, e pelo próprio conluio entre o médico que faz o aborto e a gestante que consente, chega ao conhecimento da autoridade policial, por outras formas. Nenhuma gestante, a não ser que o aborto não tenha sido consentido, vai até uma delegacia registrar ocorrência, até porque, no caso do consentimento, ela também cometeu crime. Na maioria das vezes, surge uma suspeita, pelo rumor do povo, e o delegado ordena uma investigação. E aí está a importância do delegado inserir-se na sociedade, transitar em todos os meios, possuir uma boa rede de informantes, às vezes informais.

A morte de algum bebê em um hospital também pode levantar suspeitas, e como toda morte dessa natureza é registrada na delegacia, ainda que sem um crime, a princípio, cabe ao delegado e seus agentes terem sensibilidade e perspicácia, uma espécie de “desconfiômetro”.

Arquivo pessoal

2) Fale sobre a operação que liderou em 2009.

O caso mais clamoroso desse tipo de delito que já investiguei foi descoberta durante uma interceptação telefônica em um inquérito que investigava crimes de tráfico de drogas e formação de quadrilha, quando chefiava a Delegacia de Polícia de Itaqui, na fronteira oeste do Rio Grande do Sul. Rapidamente, a seção de investigação da delegacia conseguiu levantar mais dados depois da descoberta fortuita a partir do “grampo”, e organizei na noite do mesmo dia uma ação policial batizada de “Operação Rei Herodes”, que estourou uma clínica clandestina de aborto, que atendia pessoas até do centro do estado.

No local, achamos vários medicamentos, seringas e material de uso restrito a hospitais. A partir do auxílio de uma perita farmacêutica, conseguimos demonstrar, ainda durante a madrugada, que a ação daqueles remédios faria justamente a expulsão forçada do feto e ajudaria no estancamento da hemorragia subsequente. Encontramos também várias bulas de misoprostol argentino. Com base nisso, pedi, na mesma madrugada, a prisão preventiva da dona da clínica, a qual consegui rapidamente do Poder Judiciário, poucas horas depois. No amanhecer, então, voltamos à clínica e efetuamos a prisão. Não havia nenhum médico envolvido. Era uma leiga mesmo. E também não flagramos ninguém cometendo o aborto ou consentindo que nela se cometesse.

O aborto era provocada por essa leiga, sem formação alguma em medicina ou enfermagem, mas com o consentimento das gestantes. A pessoa que fazia os abortos com consentimento cometeu o crime descrito no art. 126 do Código Penal, com pena de até quatro anos.

Mais tarde, durante o inquérito, indiciei também aquelas pessoas que descobrimos terem se submetido ao aborto. Elas cometeram o crime do art. 124 do Código Penal, com pena de até três anos.

4) O que você acha da tentativa de legalização do aborto no país via reforma do Código Penal ?

Isso vai contra todas as mais caras tradições jurídicas de nossa pátria, que sempre assegurou a observância do direito à vida como o mais fundamental. Nossa cultura jurídica é plasmada pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Como se vai promover dignidade de um ser humano inocente, matando-o?

Nunca é demais lembrar que o Brasil também subscreve tratados internacionais que consideram a violação da vida de um inocente, desde a concepção, um crime.

Além disso, é uma tentativa de se fazer, mediante uma comissão ou um grupo de parlamentares, uma mudança legislativa em descompasso com a vontade do povo, que já se manifestou, inúmeras vezes, contrário ao aborto.

Isso no aspecto meramente jurídico, sem entrarmos em temas morais, religiosos ou mesmo científicos – este último, ademais, é um terreno no qual se prova que o feto é vida humana.

5) O que você acha da afirmação dos defensores da legalidade do aborto, de que a criminalização dessa prática pune injustamente as mulheres que o cometem, por serem pobres e consideram não ter condições de criar seus filhos ?

A lei não pune só as pobres. Pune a todos que matam os filhos no seu ventre. Mulheres ricas também morrem em clínicas clandestinas.

E não é porque a morte da gestante é um fato que se deve legalizar a morte do filho que traz em seu seio. Pelo mesmo raciocínio, se deveria legalizar os assaltos, em que tantos criminosos acabam morrendo em confronto com a polícia?

Além do mais, a lei já traz diversas hipóteses em que um crime – qualquer crime – pode ter sua pena atenuada por circunstâncias particulares, e o delegado leva isso em conta no indiciamento, bem como o promotor na acusação e o juiz durante o processo, sem falar no advogado que defende o réu.

6) O código penal prevê exceções para o aborto, como caso de estupro ou risco de vida para a mãe. Nesse caso é correto dizer que o aborto é legal, ou ainda se trata de um crime, mas sem punição ?

A doutrina se divide. Majoritariamente, se considera que os casos apresentados são de exclusão da ilicitude. Todavia, pela redação clara da lei, defendo que se trata de exclusão da punibilidade tão somente. A ilicitude é um componente do conceito de crime, que é fato típico, ilícito e culpável. Afastando-se a ilicitude, não se teria crime. Ora, mas para que não fosse crime nesses casos, o Código teria de trazer um comando como “Não é crime” ou “Não é ilícito” ou “Exclui-se a ilicitude”. Não foi o que o legislador fez, optando por um mero “Não se pune”. De tal sorte, continua sendo crime, a meu ver, ainda que não passível de pena, exatamente como em outras situações ( o furto de descendente contra ascendente, por exemplo).

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