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Por Karla Cruz Montenegro Ramos

Os órfãos de Downton Abbey estavam em polvorosa, pois The Crown, das novas séries produzidas com o selo Netflix, prometia preencher o vazio deixado nos apreciadores do estilo nobreza e chá da tarde. Assim eu também pensava. The Crown, contudo, ultrapassa as curiosidades sobre estilo de vida e intrigas da nobreza britânica. Trata-se de um testemunho. Um comovente testemunho do que há de sublime e digno na realidade das coisas, ou mais propriamente: de sua realeza.  

Já ouvi sobre o senso comum e realístico que detém o inglês, como que uma aptidão documental inata. Assim é o tom escolhido por Peter Morgan, um exímio biógrafo que assina o roteiro de grandes filmes como Frost/Nixon, Rush – No Limite da Emoção, O Último Rei da Escócia e A Rainha (filme que sinalizava sua profunda admiração pela monarquia britânica). Como ilustra o memorável diálogo entre Churchill (John Lithgow, em atuação estupenda) e seu retratista, Graham Sutherland (Sephtan Dillan ou Stannis Baratheon): a essência da arte é revelar a verdade. E esta verdade geralmente está oculta.

Por isso The Crown não é uma obra grandiloquente, em que pese os estimados 100 milhões de custos na produção. Muito se está no não dito. Desde anúncios de mortes a brigas entre esposos. Apenas sabemos que acontecem sem na verdade ouvi-los ou vê-los. A verdade caminha discreta e sutil, embalada pela trilha sonora de Hans Zimmer, num de seus melhores trabalhos. Razões que podem desconfortar os que preferem se entreter com ação ou tramas cheias de reviravoltas. The Crown está mais para contemplação e meditação.

É um jogo de contrastes, muito além dos contrastes de luz. Um rei que não queria ser rei morre e uma jovem assume precocemente a responsabilidade de ser o símbolo de uma perenidade inextinguível. Um príncipe submetido a uma mulher em uma sociedade patriarcal, um primeiro-ministro, símbolo da defesa da democracia no Ocidente, possuidor de um extremo zelo pela instituição monárquica, um ex-rei que optou deixar a realeza por uma vida ainda mais aburguesada, dentre outros exemplos do constante jogo de sombra e luz.  

Há duas cenas tocantes no qual repousa este tom paradoxal. Na primeira, o antigo rei (Leny Price), já desenganado pelos médicos, entoa um dueto com sua filha Margaret (Vanessa Kirby), acompanhado de familiares e amigos na época de Natal e é interrompido pelos moradores da região. Seus súditos presenteiam o rei com uma coroa de papelão e este canta uma música natalina – In the Bleak Mindwinter – onde a estrofe final diz “O que eu posso dar a ele, pobre como eu sou? Se eu fosse um pastor, eu traria um cordeiro; se eu fosse um sábio, eu faria a minha parte; Mas o que eu posso dar a Ele: dou meu coração” (tradução livre).

Isto mostra o contraste de um rei na terra para o Rei dos Reis que veio sem nada possuir e que, portanto, é justo em pedir tudo de nós, principalmente dos reis. Ele exige toda a vida e o antigo rei George VI cumpre à risca.

Outro momento deslumbrante é a cena da coroação de Elizabeth II (Claire Foy) comentada pelo ex-rei Edward (Alex Jennings) aos convidados de sua mansão que assistem o antigo ato pela novidade da televisão. Vemos o contraste entre o eterno e o divino mostrado através da liturgia com a suposta liberdade burguesa do ex-rei. Seu amor romântico em contraposição às juras de amor protocolizadas. Sentimos o vazio que a renúncia à Coroa deixou em sua vida, bem como a necessidade de que o amor, mais do que liberdade, requer obediência a formas eternas para que seja pleno. Sem isso, pode se corromper em comodismo e rancor. 

Cenário e figurinos estão esplêndidos, valendo cada centavo gasto para ser admirado.  Mas é no elenco onde A Coroa brilha. Claire Foy se sai bem no difícil papel de rainha precoce, nela vemos a transição de seus trejeitos relutantes em firmeza real, o desenvolvimento da personagem é um dos pontos altos da série.  Matt Smith (um dos tantos Dr. Who) também é eficiente na sua performance, transmitindo sua frustração por ter cada aspecto de sua liberdade tolhido, ainda que por vezes seus constantes resmungos se tornem cansativos. Vanessa Kirby também é eficiente em incorporar a espontânea e ardente irmã da Rainha, princesa Margaret que acaba por se apaixonar por um homem divorciado, ainda que não seja permitido pela Igreja Anglicana. A oposição de sua personalidade ao caráter sério e contido de Elizabeth também é realçada.

Há menções honrosas como a Rainha Mary (Dame Eileen Atkins), em toda a sua altivez, simbolizando o caráter perene da monarquia. Infelizmente a Rainha-Mãe (Victoria Hamilton) não desenvolve além das lágrimas ao expor o temperamento de sua personagem. Em sua curta participação, Leny Price deixa sua marca como o rei que aceitou tanto o peso da Coroa como o peso da morte.

O roubo (a apropriação) das cenas, todavia, fica por conta de John Lithgow que interpreta um Winston Churchill já velho e corcunda, porém não menos arrojado, em seu terceiro mandato (não consecutivo). Sua obsessão por não deixar o poder contrasta com a relutância da jovem Elizabeth em assumir um poder perene.  As melhores e mais emocionantes cenas são as que ele está presente. Cada tique e toda a verve do eleito maior britânico de todos os tempos são corporificados com intensidade em Lithgow o que deve, sem dúvidas, render-lhe inúmeras nomeações.

The Crown esmera-se na delicadeza em tratar sobre virtudes e instituições não mais bem quistos pela modernidade, como o valor do silêncio e da prudência, do casamento e da monarquia. O senso de dever e a responsabilidade são exaltados como sinais de maturidade da personalidade em contraposição a decisões inconsequentes e sentimentais. No fim das contas, percebemos que o maior dos poderes é o mais submisso. Para reinar tem de servir, abrindo mão de tudo, família e gostos, por um bem maior.

A série mostra que o afã por autenticidade, um individualismo excessivo, esquece-se de que há todos que são maiores que a mera junção de suas partes. Há coisas superiores que requisitam constantes renúncias. A verdadeira grandeza exige muita pequenez. A Coroa exige mais que a cabeça, exige o coração.  

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Nota:

5

Sinopse: A trama é focada nas audiências semanais realizadas entre a rainha Elizabeth II e os primeiros-ministros ingleses, de 1952 até os dias de hoje. O roteiro foi escrito por Peter Morgan (A Rainha) e Stephen Daldry (As Horas). Baseado na peça The Audience, encenada por Hellen Mirren.

Ficha técnica:

Gênero: Seriado – Drama
Elenco: Claire Foy, Matt Smith, Vanessa Kirby, Eileen Atkins, Jeremy Northam, Victoria Hamilton, Ben Miles, Greg Wise, Jared Harris, John Lithgow
Produção: Netflix
Classificação: livre

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