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Comer lentilha, pular sete ondinhas, usar roupa branca, não comer carne de aves. A virada do ano está chegando e tem gente achando que fazer essas coisas vai tornar 2017 um ano melhor. Para quem é cristão, acreditar nisso tem um nome muito claro: superstição e, em última instância, idolatria, isto é, pôr a confiança não no Deus verdadeiro, mas em qualquer objeto ou prática.

Evidentemente, há muitos católicos que estão alertas quanto a isso e reconhecem que atribuir algum tipo de poder à ingestão de lentilha contraria frontalmente a fé em Deus. É preciso, porém, estar consciente não somente das superstições que cercam datas como a virada do ano, mas do risco que a postura supersticiosa traz para o próprio âmbito da fé cristã.

É interessante que é sobretudo com esse âmbito que o Catecismo da Igreja Católica se preocupa no parágrafo em que aborda a superstição. Vejamos: “A superstição é um desvio do sentimento religioso e das práticas que ele impõe. Também pode afetar o culto que prestamos ao verdadeiro Deus: por exemplo, quando atribuímos uma importância de algum modo mágica a certas práticas, aliás legítimas ou necessárias. Atribuir só à materialidade das orações ou aos sinais sacramentais a respectiva eficácia, independentemente das disposições interiores que exigem, é cair na superstição” (n. 2111).

Como deixa claro o texto, não se trata de apontar uma ou outra prática do cristianismo que especialmente incorre em risco de se tornar superstição. A postura supersticiosa e idolátrica pode recair sobre qualquer coisa. Lembro de uma conversa que tive certa vez com um amigo, pastor presbiteriano, em que ele apontava como existem segmentos evangélicos que acusam o catolicismo de idolatria por causa dos santos ou da eucaristia, mas tratam de maneira idolátrica as palavras da Bíblia, por exemplo.

Mal praticada, a devoção aos santos pode, sim, ser supersticiosa. Se desconsidero que a pessoa canonizada é um irmão meu na fé que já contempla o rosto de Deus e, como aqui na terra, continua a interceder por mim junto a Ele, e passo a tratar a sua figura ou as orações que lhe faço como se delas dependessem a minha salvação, a minha proteção ou a solução para algum problema específico, estou pondo-o em um lugar que só cabe a Deus. E mesmo se me dirijo a Deus, tratando alguma forma de oração como uma espécie de ritual mágico para conseguir algo, eu a desvirtuo e a transformo em algo que já não tem nada a ver com a abertura do meu coração a Deus e a minha confiança nele.

Para entender um pouco melhor esse aspecto, vale a pena dar uma olhada no que Jesus fala sobre a oração em Mateus 7 e em Lucas 11, passagens paralelas. Em ambos os trechos, o Senhor diz que “todo aquele que pede, recebe” (Mt 7, 8; Lc 11, 10). Em Mateus, Jesus termina dizendo: “Se vós, pois, que sois maus, sabeis dar boas coisas a vossos filhos, quanto mais vosso Pai que está nos céus dará o que é bom aos que lhe pedirem” (v. 11). Em Lucas, o versículo 13 é igual à conclusão de Mateus, mas há uma pequena diferença: troca-se “o que é bom” por “o Espírito Santo”. Assim, fica claro o que é bom: o Espírito Santo, que é o amor de Deus, a sua presença em nós, a nossa comunhão com a Trindade e o amor com que amamos ao próximo.

Ter isso em mente é um bom critério para discernir se estamos caindo na superstição ou não. Pode parecer que eu tenho muita fé se frequento infalivelmente uma novena pelos nove dias em busca de um favor divino. Mas se o meu pedido está fora do contexto de uma vida em que a experiência do amor da Trindade é o centro e é fonte de uma resposta de amor a Deus e ao próximo, então já não se trata de fé cristã, mas de uma forma de idolatria. Não é mais ao Deus revelado por Cristo que estou me dirigindo. A oração fundamental do cristianismo nos dá a direção de um relacionamento verdadeiro com Deus: é Aquele a quem peço que venha o seu reino, que seja feita a sua vontade e que me perdoe na medida em que perdoo o próximo.

Na última semana, muitos católicos têm demonstrado preocupação nas redes sociais porque o sangue de São Januário, preservado numa ampola em Nápoles e que habitualmente se liquefaz no dia do santo, não se liquefez neste ano – o que é sinal de que grandes catástrofes estão por vir, segundo uma tradição popular. Ou melhor, segundo uma superstição, porque não há descrição melhor para uma preocupação como essa. Em vez de a fé ser o critério para interpretar um suposto milagre ou a ausência dele, é este que, interpretado por uma tradição popular, passa a influenciar o modo de ver as realidades da fé.

O cristão pode comer lentilha, usar roupa branca e deixar de comer ave na virada do ano. Mas porque lentilha é gostoso, roupa branca pega bem com esse calor e o frango e o peru já deram o que tinha que dar no natal. O cristão pode usar medalha com a imagem de um santo que ame e busque seguir o exemplo, fazer novena e ler a Bíblia diariamente. Mas sem acreditar que tudo vai dar errado se ele não fizer isso e sem tratar o santo como fada-madrinha, a novena como simpatia e a Bíblia como horóscopo.

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